Não podemos mexer nos juros, mas podemos assegurar a estabilidade que o mercado precisa para operar.
Conforme amplamente noticiado, o ano de 2023 teve uma queda de 17% no número de transações face a 2022. Trata-se de uma previsão realizada pela Confidencial Imobiliário, tendo por base o SIR – Sistema de Informação Residencial. Este dado, contudo, como em toda a estatística, não sendo mentira, esconde outras verdades que são pelo menos tão relevantes para a formação de expectativas.
Na realidade, quando fizemos o release dessa informação, o foco que demos não estava no comportamento agregado do ano mas sim na evolução de curto prazo, em especial na segunda metade de 2023. Na nossa perspetiva, a notícia não é a queda agregada anual. A notícia, pelo contrário, é a subida do número de transações pelo segundo trimestre consecutivo. Não por se tratar de um aumento muito expressivo. Mas pelo facto de inverter a queda anterior e dar sinal de um novo potencial de mercado numa fase de viragem da trajetória dos juros.
O ano de 2023 teve duas fases muito diferentes. A primeira, no começo do ano, com uma queda trimestral de 9,2% nas vendas. Após as descidas de 3,8% e 8,6% no 3º e 4º trimestres de 2022, respetivamente, no final do 1º trimestre de 2023 o mercado acumulava uma perda de 20,1%. Um resultado com forte impacto em todos os operadores e justificativo de receios quanto ao futuro. No entanto, a esse período seguiu-se uma fase de estabilização e mesmo de ligeira recuperação, com as vendas a variar -1,7%, 1,0% e 1,2% nos três trimestres seguintes.
Publicar, como vi em muita imprensa, que “o mercado está a cair”, é manifestamente militar um apelo pela mistificação. Dizer que as vendas caíram 17% é noticiar uma realidade requentada, um acontecimento com quase um ano. A notícia que interessa e que impacta as projeções para 2024 é o facto de se acumularem já dois trimestres positivos.
Esta inversão de tendência é facilmente explicada pelos equilíbrios de mercado. Seja pela falta de oferta, pela pressão da procura, pelo baixo nível de endividamento dos proprietários, ou pela diversidade dos perfis de procura, menos dependentes de crédito. Adicionalmente, a recuperação do mercado, a famosa resiliência, é atestada por diversas fontes de dados, destacando-se o número de avaliações bancárias realizadas (INE), que está a subir desde o 2º trimestre de 2023, e o montante de novos empréstimos concedidos (BdP) que, expurgados das renegociações, regressou aos 1,2 mil milhões que se produziam em 2021 (nota: dados em valor e não em número).
Há um equívoco endémico em muita opinião pública e publicada que perspetiva na queda e desvalorização do mercado a solução para os problemas da habitação. Talvez isso explique esse apelo por todas as más notícias.
Por isso mesmo, nunca é demais fazer a pedagogia de como a desvalorização do mercado simplesmente agravaria a crise da habitação, levando ao congelamento do crédito e penalização dos que dele mais dependem. Paradoxalmente, a desvalorização seria uma boa notícia para quem atua sem crédito, podendo “ir às compras” em desconto. A solução para essa crise passa pela criação de condições para o surgimento de habitação acessível, para venda e arrendamento, atuando sobre os fatores de custo e promovendo o aumento da oferta.
Ora, precisamente, ao contrário do desejado, o que se observa é um aumento no hiato entre as intenções de investimento e a obra efetivamente lançada. Os números que a Confidencial Imobiliário trata mostram que em 2023 foram emitidos pré-certificados energéticos para 31 mil novos apartamentos, ultrapassando os níveis de 2019. No acumulado dos últimos cinco anos, ascendem a 129 mil os novos apartamentos em projeto. No entanto, no mesmo período, somente 76 mil entraram em obra. O rácio entre obras (licenças) e projetos (pré-certificados) reduziu-se de 74% em 2021 para 53% em 2023. O ciclo de instabilidade – pandemia, guerra, inflação, juros e pacote Mais Habitação – tirou 53 mil novos apartamentos ao mercado.
Conforme o Investment Property Survey, que fazemos em parceria com a APPII, no último ano a instabilidade e riscos políticos foram os fatores que mais se agravaram e penalizam o aumento da oferta. Não são os juros ou a economia. Isso até podem ser boas notícias. Porque se não podemos mexer nos juros, podemos assegurar a estabilidade que o mercado – oferta e procura – precisa para operar.